Trecho retirado de "O Segundo Círculo do Poder", de Carlos Castañeda, narrando um diálogo com La Gorda:
— Por que você se aborrece
tanto de falar sobre essas coisas? — perguntou ela.
Eu lhe disse que um dia tive um menininho que
eu amava imensamente. Senti necessidade de contar-lhe sobre ele. Alguma necessidade
extravagante, além da minha compreensão, me fez abrir-me com aquela mulher que
era para mim uma estranha.
Quando comecei a falar sobre o menino, uma
onda de nostalgia envolveu-me. Talvez fosse o lugar, ou a situação, ou a hora
do dia. Não sei por que, eu fundira a memória daquele menino com a de Dom Juan,
e pela primeira
vez, desde a última vez em que o vira, senti saudades de Dom
Juan. Lídia tinha dito que nunca sentiam falta dele porque ele estava sempre
com elas; ele era seus corpos e seus espíritos. Entendi logo o que queria dizer. Eu também sentia
a mesma coisa. Porém naquela garganta um sentimento desconhecido se apossara de
mim. Eu disse à Gorda que, até aquele momento, nunca sentira saudades de Dom
Juan. Ela não deu resposta e desviou o olhar.
Talvez
a minha saudade dessas duas pessoas tivesse algo a ver com o fato de que ambas
produziram catarses em minha vida. E ambas tinham desaparecido. Até aquele
momento eu não percebera como essa separação era final. Disse à Gorda que,
acima de tudo, aquele menino fora meu amigo, e que um belo dia ele me foi
tirado por forças que eu não podia controlar. Aquele foi, talvez, um dos golpes
mais rudes que jamais sofri. Cheguei a procurar Dom Juan, para lhe pedir ajuda.
Foi a única vez em que pedi auxílio. Ele ouviu a minha solicitação e deu uma
gargalhada. Sua reação foi tão inesperada que nem pude zangar-me. Só pude
comentar sobre o que me pareceu a sua insensibilidade.
— O que
quer que eu faça? — perguntou.
Respondi
que, já que ele era feiticeiro, talvez pudesse ajudar-me a recuperar o meu
amiguinho, para aliviar-me.
— Você
está enganado. Um guerreiro não procura nada para consolar-se — disse ele, num
tom que não admitia réplicas.
Depois,
passou a destruir os meus argumentos. Disse que um guerreiro nunca podia deixar
nada ao acaso, que o guerreiro alterava o resultado dos acontecimentos pela
força de sua percepção e seu propósito inquebrantável. Disse que se eu tivesse
tido o propósito inabalável de guardar e ajudar aquela criança, eu teria tomado
medidas para garantir que ele ficasse comigo. Mas, no caso, o meu amor não
passava de uma palavra, um repente inútil de um homem vazio. Depois, me falou
coisas sobre o vazio e o completo, mas eu não o quis ouvir. Eu só sentia uma impressão de
perda e o vazio que ele mencionava, eu tinha certeza, referia-se à sensação de
ter perdido alguém insubstituível.
— Você
o amava, honrava o espírito dele, você lhe desejava o bem, agora tem de esquecê-lo — disse.
Mas eu
não conseguira fazê-lo. Havia algo muito vivo em minhas emoções, embora o tempo
as tivesse abrandado. A certa altura pensei ter esquecido, mas aí, uma noite um
incidente provocou em mim uma profunda perturbação emocional. Eu estava
caminhando para meu escritório, quando uma moça mexicana abordou-me. Estivera
sentada num banco, esperando um ônibus. Queria saber se aquele determinado
ônibus ia a um hospital de crianças. Eu não sabia.
Ela explicou que o seu filhinho tinha febre alta havia dias e ela estava
preocupada, pois não possuía dinheiro. Fui até ao banco e vi um menininho em pé
no assento, com a cabeça encostada no encosto. Estava de paletó e calças curtas
e um boné. Não podia ter mais de dois anos. Deve ter-me dito, pois foi até à
ponta do banco e apoiou a cabeça na minha perna.
— Minha
cabecinha está doendo — disse-me ele em espanhol. A sua vozinha era tão fraca e os olhos
escuros tão tristes que uma onda de angústia irreprimível assaltou-me. Peguei-o
no colo e levei-o junto com a mãe de carro para o hospital mais próximo.
Deixei-os lá e dei à mãe dinheiro para poder pagar a conta. Mas não quis ficar
nem saber de mais nada sobre ele. Quis crer que eu o havia ajudado, e que assim
fazendo, tinha retribuído ao espírito do homem. Aprendi o ato mágico de
"retribuir ao espírito do homem" com Dom Juan. Um dia, assoberbado
com a idéia de que eu nunca poderia retribuir-lhe tudo quanto fizera por mim,
perguntei-lhe se havia alguma coisa no mundo que eu pudesse fazer para saldar a
dívida.Estávamos saindo de um banco, depois de ter trocado um pouco de dinheiro
mexicano.
— Não
preciso que você me pague — disse — mas se você quiser mesmo retribuir, faça o
seu depósito para o espírito do homem. Essa conta é sempre de saldo
muito baixo, e tudo quanto se puser ali é mais que suficiente.
Ajudando
aquela criança doente eu apenas retribuía ao espírito do homem qualquer auxílio
que o meu menino possa receber de estranhos em seu caminho.
Eu
disse à La Gorda que o meu amor por
ele continuaria vivo o resto de minha vida, embora eu nunca mais o visse. Eu
queria dizer a ela que a recordação que eu tinha dele estava enterrada tão funda
que nada a poderia tocar, mas desisti disso. Achei que teria sido supérfluo
falar sobre isso. Além disso, estava ficando escuro e eu queria sair daquela caverna.
(...)