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À Esquerda, Um Braço De Distância

 O texto a seguir foi retirado do livro Viagem A Ixtlan (Editora Nova Era), de Carlos Castañeda. Relata um dos ensinamentos do feiticeiro índio de Sonora, México, Don Juan Matus, registrado pelo estudante de antropologia da Universidade da Califórnia, durante a década de 1960.

 Estavam em uma de suas longas caminhadas pelo deserto.

***

 (...) Disse-me para virar com naturalidade e olhar para uma pedra à esquerda. Disse que minha morte estava ali olhando para mim e que, se me virasse quando ele fizesse sinal, eu poderia vê-la. Fez-me sinal com os olhos. Eu me virei e pensei ver um rápido movimento por cima da pedra. Um calafrio me percorreu o corpo, os músculos de meu abdômen se contraíram involuntariamente e eu senti uma sacudidela, um espasmo. Depois de um momento, controlei-me e expliquei a sensação de ter visto a sombra fugaz como uma ilusão de óptica provocada por ter virado a cabeça tão abruptamente.

 — A morte é nossa eterna companheira — falou Dom Juan, com um ar muito sério. — Está sempre à nossa esquerda, à distância de um braço. Ela o estava espreitando quando você observava o falcão branco; sussurrou em seu ouvido e você sentiu o frio dela, como hoje. Ela sempre o espreitou. Sempre o fará, até o dia em que o tocar.

 Estendeu o braço e me tocou de leve no ombro, estalando ao mesmo tempo a língua. O efeito foi devastador; eu quase vomitei.— Você é o menino que seguia a caça e esperou pacientemente, como a morte espera; sabe bem que a morte está à nossa esquerda, assim como você estava à esquerda do falcão branco. As palavras dele tiveram o estranho poder de me lançar num terror inexplicável; minha única defesa foi o impulso de escrever tudo o que ele dizia.

 — Como é que alguém pode sentir-se tão importante quando sabe que a morte está no seu encalço? — perguntou ele. Tinha a impressão de que minha resposta não era realmente necessária. Eu não podia ter dito nada, mesmo. Um novo estado de espírito me dominara.

 — O que se deve fazer quando se é impaciente — continuou ele — é virar-se para a esquerda e pedir conselhos a sua morte. Você perderá uma quantidade enorme de mesquinhez se sua morte lhe fizer um gesto, ou se a vir de relance, ou se, ao menos, tiver a sensação de que sua companheira está ali, vigiando-o.

 Tornou a debruçar-se e cochichou em meu ouvido que, se eu me virasse para a esquerda de repente, ao seu sinal, tornaria a ver minha morte na pedra. Seus olhos me fizeram um sinal quase imperceptível, mas não ousei olhar. Disse-lhe que acreditava nele e que não precisava insistir mais naquilo, pois eu estava apavorado. Deu uma de suas gargalhadas ruidosas.

 Respondeu que o assunto da morte nunca era abordado demais. Argumentei que seria inútil eu meditar sobre minha morte, pois essa ideia só me traria incômodo e medo. — Você é cheio de besteiras! — exclamou. — A morte é a única conselheira sábia que possuímos. Toda vez que sentir, como sente sempre, que está tudo errado e você está prestes a ser aniquilado, vire-se para sua morte e pergunte se é verdade. Ela lhe dirá que você está errado; que nada importa realmente, além do toque dela. Sua morte lhe dirá: "Ainda não o toquei".

 Sacudiu a cabeça e parecia estar esperando minha resposta. Eu não tinha nenhuma. Meus pensamentos estavam numa carreira desenfreada. Ele desfechara um golpe tremendo em meu egocentrismo. A mesquinharia de me aborrecer com ele era monstruosa, à luz de minha morte. Tinha a impressão de que ele estava plenamente consciente de minha mudança de disposição. Dom Juan virara a maré a seu favor. Sorriu  e  começou  a  cantarolar  uma  canção  mexicana.

 — Sim — disse ele, baixinho, depois de uma longa pausa. — Um de nós dois tem de mudar, e depressa. Um de nós dois tem de tornar a aprender que a morte é a caçadora e que está sempre à nossa esquerda. Um de nós dois tem de pedir conselhos à morte e largar as malditas mesquinharias que são próprias dos homens que vivem suas vidas como se a morte nunca os viesse tocar.

***

Aos Viajantes


  A carroça do destino nos levará a todos igualmente. Mas há dois tipos de viajantes: os guerreiros que podem partir com sua totalidade, porque eles afinaram cada detalhe de suas vidas; e as pessoas comuns, com existências enfadonhas, sem criatividade, cuja única espera é a repetição de seus estereótipos de agora até o final; pessoas cujo fim não encontrará diferença alguma, aconteça hoje ou em trinta anos. Todos estamos ali, esperando na plataforma da eternidade, mas nem todos sabem disso. A consciência da morte é uma arte maior.


- Castañeda



Death Walks Behind You




 "Como é que alguém pode sentir-se tão importante quando sabe que a morte está no seu encalço?"



Death Walks Behind You (Atomic Rooster)

Trecho de Viagem A Ixtlan (Castañeda)

Querer Bem


 Achei que devia deixá-los em casa e depois seguir para um hotel na cidade. Por nada no mundo eu teria ido para a casa de Dom Genaro; mas Nestor não quis sair do carro, nem Pablito, nem eu. Acabamos em casa de Pablito. Ele mandou Nestor comprar cerveja e Coca-Cola, enquanto a mãe e as irmãs nos preparavam alguma coisa para comer. Nestor fez uma brincadeira e perguntou se podia ser acompanhado pela irmã mais velha, caso fosse atacado por cachorros ou bêbados. Pablito riu e me disse que Nestor lhe tinha sido confiado. 

 — Quem o confiou a você? — perguntei.
 
 — O poder, é claro! Houve um tempo em que Nestor era mais velho do que eu, mas Genaro lhe fez alguma coisa e hoje ele é muito mais moço. Você viu isso, não viu? 

 — O que foi que Dom Genaro fez? — perguntei.
 
 — Sabe, ele o tornou criança de novo. Ele era muito importante e pesadão. Teria morrido, se não tivesse ficado mais moço. 

 Havia algo de verdadeiramente cândido e cativante em Pablito. A simplicidade de sua explicação era esmagadora, para mim. Nestor estava realmente mais moço; não somente em aparência, mas agia como uma criança inocente. Eu sabia sem dúvida alguma que ele sinceramente se sentia como uma criança. 

 — Tomo conta dele — continuou Pablito. — Genaro diz que é uma honra tomar conta de um guerreiro. Nestor é um bom guerreiro. — Os olhos dele brilhavam, como os de Dom Genaro. Ele me deu uns tapinhas nas costas, com força, e riu-se. — Queira-lhe bem, Carlitos — disse ele. — Queira-lhe bem.  

 Eu estava muito cansado. Senti uma onda estranha de uma tristeza feliz. Disse-lhe que eu vinha de um lugar em que as pessoas raramente se querem bem, quando querem.                                 

 — Eu sei — disse ele. — A mesma coisa acontece comigo. Mas sou um guerreiro e posso me dar ao luxo de lhe querer bem.




(Porta para o Infinito) 

O Espírito Do Homem


 Trecho retirado de "O Segundo Círculo do Poder", de Carlos Castañeda, narrando um diálogo com La Gorda:



 — Por que você se aborrece tanto de falar sobre essas coisas? — perguntou ela.

 Eu lhe disse que um dia tive um menininho que eu amava imensamente. Senti necessidade de contar-lhe sobre ele. Alguma necessidade extravagante, além da minha compreensão, me fez abrir-me com aquela mulher que era para mim uma estranha.

 Quando comecei a falar sobre o menino, uma onda de nostalgia envolveu-me. Talvez fosse o lugar, ou a situação, ou a hora do dia. Não sei por que, eu fundira a memória daquele menino com a de Dom Juan, e pela primeira vez, desde a última vez em que o vira, senti saudades de Dom Juan. Lídia tinha dito que nunca sentiam falta dele porque ele estava sempre com elas; ele era seus corpos e seus espíritos. Entendi logo o que queria dizer. Eu também sentia a mesma coisa. Porém naquela garganta um sentimento desconhecido se apossara de mim. Eu disse à Gorda que, até aquele momento, nunca sentira saudades de Dom Juan. Ela não deu resposta e desviou o olhar. 

 Talvez a minha saudade dessas duas pessoas tivesse algo a ver com o fato de que ambas produziram catarses em minha vida. E ambas tinham desaparecido. Até aquele momento eu não percebera como essa separação era final. Disse à Gorda que, acima de tudo, aquele menino fora meu amigo, e que um belo dia ele me foi tirado por forças que eu não podia controlar. Aquele foi, talvez, um dos golpes mais rudes que jamais sofri. Cheguei a procurar Dom Juan, para lhe pedir ajuda. Foi a única vez em que pedi auxílio. Ele ouviu a minha solicitação e deu uma gargalhada. Sua reação foi tão inesperada que nem pude zangar-me. Só pude comentar sobre o que me pareceu a sua insensibilidade.

 — O que quer que eu faça? — perguntou.

 Respondi que, já que ele era feiticeiro, talvez pudesse ajudar-me a recuperar o meu amiguinho, para aliviar-me. 

 — Você está enganado. Um guerreiro não procura nada para consolar-se — disse ele, num tom que não admitia réplicas.

 Depois, passou a destruir os meus argumentos. Disse que um guerreiro nunca podia deixar nada ao acaso, que o guerreiro alterava o resultado dos acontecimentos pela força de sua percepção e seu propósito inquebrantável. Disse que se eu tivesse tido o propósito inabalável de guardar e ajudar aquela criança, eu teria tomado medidas para garantir que ele ficasse comigo. Mas, no caso, o meu amor não passava de uma palavra, um repente inútil de um homem vazio. Depois, me falou coisas sobre o vazio e o completo, mas eu não o quis ouvir. Eu só sentia uma impressão de perda e o vazio que ele mencionava, eu tinha certeza, referia-se à sensação de ter perdido alguém insubstituível. 

 — Você o amava, honrava o espírito dele, você lhe desejava o bem, agora tem de esquecê-lo — disse.

 Mas eu não conseguira fazê-lo. Havia algo muito vivo em minhas emoções, embora o tempo as tivesse abrandado. A certa altura pensei ter esquecido, mas aí, uma noite um incidente provocou em mim uma profunda perturbação emocional. Eu estava caminhando para meu escritório, quando uma moça mexicana abordou-me. Estivera sentada num banco, esperando um ônibus. Queria saber se aquele determinado ônibus ia a um hospital de crianças. Eu não sabia. Ela explicou que o seu filhinho tinha febre alta havia dias e ela estava preocupada, pois não possuía dinheiro. Fui até ao banco e vi um menininho em pé no assento, com a cabeça encostada no encosto. Estava de paletó e calças curtas e um boné. Não podia ter mais de dois anos. Deve ter-me dito, pois foi até à ponta do banco e apoiou a cabeça na minha perna. 

 — Minha cabecinha está doendo — disse-me ele em espanhol. A sua vozinha era tão fraca e os olhos escuros tão tristes que uma onda de angústia irreprimível assaltou-me. Peguei-o no colo e levei-o junto com a mãe de carro para o hospital mais próximo. Deixei-os lá e dei à mãe dinheiro para poder pagar a conta. Mas não quis ficar nem saber de mais nada sobre ele. Quis crer que eu o havia ajudado, e que assim fazendo, tinha retribuído ao espírito do homem. Aprendi o ato mágico de "retribuir ao espírito do homem" com Dom Juan. Um dia, assoberbado com a idéia de que eu nunca poderia retribuir-lhe tudo quanto fizera por mim, perguntei-lhe se havia alguma coisa no mundo que eu pudesse fazer para saldar a dívida.Estávamos saindo de um banco, depois de ter trocado um pouco de dinheiro mexicano. 

 — Não preciso que você me pague — disse — mas se você quiser mesmo retribuir, faça o seu depósito para o espírito do homem. Essa conta é sempre de saldo muito baixo, e tudo quanto se puser ali é mais que suficiente.

 Ajudando aquela criança doente eu apenas retribuía ao espírito do homem qualquer auxílio que o meu menino possa receber de estranhos em seu caminho.

 Eu disse à La Gorda que o meu amor por ele continuaria vivo o resto de minha vida, embora eu nunca mais o visse. Eu queria dizer a ela que a recordação que eu tinha dele estava enterrada tão funda que nada a poderia tocar, mas desisti disso. Achei que teria sido supérfluo falar sobre isso. Além disso, estava ficando escuro e eu queria sair daquela caverna.

(...)

A Loucura Controlada

 Trecho de Uma Estranha Realidade, do antropólogo Carlos Castañeda, no qual é abordado o tema da ''loucura controlada''. Segundo o bruxo Juan Matus, tudo o que fazemos, pensamos e sentimos; todas as nossas atividades e crenças, são apenas escudos, véus que colocamos diante dos olhos para pouparmo-nos de encarar o fundo dos abismos de nossa própria natureza misteriosa.

 Um dos efeitos colaterais mais embaraçosos causados por nossos ''escudos'' é que nos tornamos tão dependentes deles, tão obcecados por nossas rotinas, que os tomamos a sério demais.

 A loucura controlada é o comportamento que o guerreiro adota diante de situações em que precisa interagir com seus semelhantes, em que ele age impecavelmente mesmo quando não se importa com o que faz. É um meio de agir livre de obsessões. Controlar a loucura social, agindo de forma consciente e não por impulso, é uma das artes da feitiçaria.

 ***

'' Eu estava ajudando-o a limpar umas ervas secas. Trabalhamos num silêncio total por muito tempo. Quando sou forçado a permanecer calado por muito tempo, fico apreensivo, especialmente junto de Dom Juan. Num dado momento, fiz-lhe uma pergunta, num rompante impulsivo, quase truculento.

 — Como é que um homem de conhecimento pratica a loucura controlada, quando se trata da morte de uma pessoa que ele ama?


 Dom Juan foi colhido de surpresa por minha pergunta e olhou para mim de modo estranho.


 — Veja seu neto, Lúcio, por exemplo — disse eu. — Seus atos seriam loucura controlada, no momento da morte dele?


 — Veja meu filho Eulálio, é um exemplo melhor  —  respondeu Dom Juan, calmamente. — Foi esmagado pelas pedras quando trabalhava na construção da Estrada de Rodagem Pan-Americana. Meus atos para com ele no momento de sua morte foram loucura controlada. Quando cheguei à área das explosões, ele estava quase morto, mas o corpo dele era tão forte que continuava a se mexer e dar pontapés. Fiquei diante dele e disse aos rapazes da turma da estrada para não mexerem mais nele; obedeceram-me e ficaram ali em volta de meu filho, olhando para o corpo estraçalhado. Também fiquei ali, mas não olhei. Desviei os olhos para poder ver sua vida pessoal se desintegrando, expandindo-se incontrolavelmente além de seus limites, como uma neblina de cristais, pois é assim que a vida e a morte se misturam e expandem. Foi o que fiz no momento da morte de meu filho. É só isso que se poderia fazer, e isso é loucura controlada. Se eu tivesse olhado para ele, teria visto que ele ficava imóvel e teria sentido um grito dentro de mim, pois nunca mais havia eu de ver sua bela figura andando pela terra. Em vez disso, eu vi a morte dele, e não houve tristeza, nem sentimento algum. Sua morte foi igual a tudo o mais.


 Dom Juan ficou calado por algum tempo. Parecia triste, mas depois sorriu e bateu na minha cabeça.


 — Por isso você pode dizer que, quando se trata da morte de uma pessoa que eu amo, minha loucura controlada consiste em desviar o olhar.

 Pensei nas pessoas que eu mesmo amo, e uma onda de autocomiseração terrivelmente opressiva me envolveu.


 — Sorte a sua, Dom Juan — falei. — Pode desviar o olhar, mas eu só posso olhar.


 Ele achou graça naquilo e riu.


 — Sorte, uma bosta! É trabalho duro.


 Nós dois rimos.''


Mas Os Pássaros Ficarão, Cantando


 Nesta postagem encontra-se um trecho do livro ''Viagem a Ixtlan'', do antropólogo Carlos Castañeda. Neste trecho do último capítulo, Castañeda ouve do feiticeiro Don Genaro Flores a história do dia em que conquistou seu aliado, um tipo mágico de criatura que vaga pelo mundo e que, se capturado, torna-se um com o homem.

***



 Pedi-lhe que me contasse. Dom Genaro levantou-se, esticou os braços e as costas. Seus ossos fizeram um barulho estalado. Então, ele tornou a sentar-se.

 — Eu era rapazinho quando abordei meu aliado pela primeira vez — disse ele, por fim, — Lembro-me de que foi no princípio da tarde. Eu estava nos campos desde o raiar do dia e voltava para casa. De repente, o aliado apareceu por trás de um arbusto e me trancou o caminho. Estivera-me esperando e estava-me convidando para lutar com ele. Comecei a me virar, para deixá-lo em paz, mas ocorreu-me a idéia de que eu era suficientemente forte para poder enfrentá-lo. Mas eu estava com medo. Senti um calafrio pela espinha, e meu pescoço ficou duro como uma tábua. Por falar nisso, esse é sempre o sinal de que a pessoa está pronta, quero dizer, quando o pescoço fica duro.

 Abriu a camisa e me mostrou as costas. Enrijeceu os músculos do pescoço, costas e braços. Observei a qualidade magnífica da musculatura dele. Era como se a recordação do encontro tivesse ativado todos os músculos do torso dele.

 — Nessa situação — continuou — você deve sempre fechar a boca. — Virou-se para Dom Juan e perguntou: — Não é verdade?

 — Sim — respondeu Dom Juan, calmamente. — O choque que a pessoa leva ao agarrar um aliado é tão grande que pode morder a língua ou quebrar os dentes. O corpo deve estar ereto e bem apoiado e os pés têm que agarrar a terra.

 Dom Genaro levantou-se e me mostrou a posição correta: o corpo ligeiramente dobrado nos joelhos, os braços dependurados dos lados, com os dedos levemente enroscados. Ele parecia relaxado e, no entanto, firmemente fixo no solo. Ficou um instante naquela posição e quando pensei que ia sentar-se, ele de repente avançou para a frente num salto formidável, como se tivesse molas nos calcanhares. Seu movimento foi tão repentino que eu caí de costas; mas, ao cair, tive a impressão nítida de que Dom Genaro havia agarrado um homem, ou algo com a forma de um homem.
 Tornei a sentar-me. Dom Genaro mantinha ainda uma tensão extraordinária em todo o corpo, e depois relaxou os músculos abruptamente e voltou para onde tinha estado sentado antes e acomodou-se.

 — Carlos acabou de ver seu aliado agora — observou Dom Juan, com displicência — mas ele ainda está fraco, e caiu.

 — Foi mesmo? — perguntou Dom Genaro, num tom ingênuo, e dilatou as narinas.

 Dom Juan assegurou que eu o tinha "visto". Dom Genaro tornou a saltar para a frente com tanta força que eu caí de lado. Executou seu salto com tanta rapidez que eu não sabia mesmo como 6 que ele se tinha posto de pé para poder pular para a frente.

 Ambos riram muito e então Dom Genaro mudou seu riso para um uivo igualzinho ao de um coiote.

 — Não pense que você tem de saltar tão bem quanto Genaro para poder agarrar seu aliado — disse Dom Juan, num tom de voz da advertência. — Genaro salta assim porque tem o aliado dele que o ajuda. Basta você ficar bem firme no chão a fim de suportar o impacto. Tem de se pôr de pé exatamente como estava Genaro antes de saltar, e depois tem de pular para a frente e agarrar o aliado.

 — Primeiro, tem de beijar sua medalha — interrompeu Dom Genaro.

 Dom. Juan, com uma severidade fingida, disse que eu não tinha medalhas.

 — E os cadernos dele? — insistiu Dom Genaro. — Tem de fazer alguma coisa com eles... largá-los em algum lugar antes de saltar, ou talvez ele use os cadernos para dar no aliado.

 — Que diabo! — exclamou Dom Juan, com uma surpresa aparentemente sincera, — Nunca pensei nisso. Aposto que será a primeira vez que um aliado é derrubado por cadernos.

 Quando os risos de Dom Juan e os uivos de coiote de Dom Genaro cessaram, estávamos todos de muito bom humor.

 — O que aconteceu quando agarrou seu aliado, Dom Genaro? — perguntei.

 — Foi um choque violento — disse Dom Genaro, depois de hesitar um momento. Ele parecia estar concatenando seus pensamentos.

 “Nunca imaginei que fosse assim — continuou, — Era uma coisa, uma coisa, uma coisa... como nada que eu possa dizer. Depois que o agarrei, começamos a girar. O aliado me fez girar, mas eu não o larguei. Rodopiamos pelo ar com tanta força que eu nem via mais nada. Tudo estava nublado. O rodopio continuou por muito tempo. De repente, senti que estava de pé no chão outra vez. Olhei para mim. O aliado não me matara. Eu estava inteiro, eu era eu! Então, vi que obtivera êxito. Afinal, eu tinha um aliado. Pulei para cima e para baixo de prazer. Que sensação! Que sensação foi aquela!”.

 "Depois, olhei em volta, para ver onde me encontrava. O lugar me era desconhecido. Achei que o aliado devia ter-me carregado pelo ar e me atirado em algum lugar muito longe de onde começamos a rodopiar. Orientei-me. Achei que minha casa devia estar para leste, por isso comecei a caminhar naquela direção. Ainda era cedo. O encontro com o aliado não tinha durado muito tempo. Logo encontrei uma trilha e então vi um grupo de homens e mulheres vindo em minha direção. Eram índios. Achei que eram índios mazatecas. Rodearam-me e perguntaram para onde eu ia "Vou para Ixtlan", disse eu. "Está perdido?", perguntou alguém. "Estou", respondi. "Por quê?", indagou o mesmo índio. "Porque Ixtlan não fica nessa direção. Ixtlan fica na direção oposta. Nós também vamos para lá", disse outra pessoa. "Venha conosco!", disseram todos. "Temos comida!"

 Dom Genaro parou de falar e olhou para mim como se estivesse esperando que eu fizesse uma pergunta.

 — E então, o que aconteceu? — perguntei. — Foi com eles?

 — Não fui, não — respondeu. — Porque eles não eram reais. Vi logo, no minuto em que chegaram perto de mim. Havia alguma coisa em suas vozes, em sua simpatia, que os denunciou, especialmente quando me convidaram para ir com eles. Por isso, eu fugi. Eles me chamaram e pediram que eu voltasse. Os chamados deles me tentavam, mas continuei fugindo.

 — Quem eram? — perguntei.

 — Gente — respondeu Dom Genaro, numa voz cortante. — Só que não eram reais.

 — Eram como aparições — explicou Dom Juan. — Como fantasmas.

 — Depois de caminhar um pouco — continuou Dom Genaro — fiquei mais confiante. Eu sabia que Ixtlan ficava na direção em que eu ia. E então vi dois homens descendo a trilha em minha direção. Eles também pareciam índios mazatecas. Tinham um burro carregado de lenha. Passaram por mim e murmuraram "Boa tarde. " "Boa tarde!", respondi, e segui andando. Eles não me deram atenção e continuaram seu caminho. Diminuí a marcha e me virei com naturalidade para olhar para eles. Estavam-se afastando, sem se preocupar comigo. Pareciam reais, Corri atrás deles e gritei: "Esperem! Esperem!" Eles seguraram o burro e ficaram um de cada lado do animal, como se estivessem protegendo sua carga. "Estou perdido nestas montanhas", disse-lhes. "Para onde fica Ixtlan?" Eles apontaram na direção em que iam. "Você está muito longe", falou um deles. "Fica do outro lado dessas montanhas. Vai levar uns quatro ou cinco dias para chegar lá." Neste momento, eles se viraram e continuaram a andar. Achei que eram índios de verdade e pedi que me deixassem ir com eles.

 “Caminhamos juntos um pouco e depois um deles, pegou seu farnel de comida e me ofereceu um pouco. Eu fiquei gelado. Havia alguma coisa terrivelmente estranha na maneira de ele me oferecer a comida. Meu corpo assustou-se, de modo que dei um salto para trás e comecei a fugir correndo. Ambos disseram que eu ia morrer nas montanhas se não fosse com eles e tentaram persuadir-me a acompanhá-los. Seus pedidos também eram muito tentadores, mas eu fugi deles a toda pressa.

 “Continuei a andar. Então, eu sabia que estava no caminho certo para Ixtlan e que aqueles fantasmas estavam querendo tentar-me para me afastar do caminho”.

 "Encontrei mais oito deles; devem ter visto que meu propósito era inabalável. Ficavam ao lado da estrada e me olhavam com olhos suplicantes. A maioria nem dizia nada; mas as mulheres eram mais audaciosas e me pediam. Algumas chegaram a mostrar comida e outras coisas que diziam estar vendendo, como vendedoras inocentes de beira de estrada. Não parei, nem olhei para eles.

 "De tardinha, cheguei a um vale que eu achei que conhecia. Por algum motivo, parecia familiar. Achei que já tinha estado ali, mas, se fosse assim, eu estava realmente ao sul de Ixtlan. Comecei a procurar marcos na paisagem para poder orientar-me direito e corrigir meu rumo, quando vi um indiozinho cuidando de umas cabras. Ele tinha talvez seus sete anos e estava vestido como eu me vestia quando era da idade dele. De fato, ele me lembrava a mim mesmo cuidando das duas cabras de meu pai.

 "Fiquei olhando para ele um pouco; o menino estava falando sozinho, assim como eu costumava fazer, e depois falava com as cabras. Do que eu sabia de cuidar de cabras, ele era bom naquilo. Era meticuloso e cuidadoso. Não as mimava, mas também não era malvado com elas.

 "Resolvi chamá-lo. Quando falei com ele em voz alta, deu um salto e fugiu para uma pedra, espiando para mim por detrás das pedras. Parecia estar pronto para fugir à toda. Gostei dele. Parecia estar com medo, mas ainda encontrou tempo para conduzir suas cabras para longe de mim.

 "Falei muito tempo com ele; disse que estava perdido e que não sabia o caminho para Ixtlan. Perguntei o nome do lugar em que estávamos e ele disse que era o lugar que eu pensava que fosse. Isso me deixou muito contente. Vi que não estava mais perdido e pensei no poder que meu aliado tinha, para transportar meu corpo assim tão longe num piscar de olhos.

 "Agradeci ao menino e comecei a me afastar. Ele saiu calmamente de seu esconderijo e conduziu suas cabras para uma trilha quase invisível. A trilha parecia levar para o vale. Chamei o menino e ele não fugiu. Caminhei para junto dele e ele pulou para dentro de uma moita, quando me aproximei demais. Elogiei-o por ser tão cauteloso e comecei a fazer mais perguntas: "Aonde leva essa trilha?", perguntei. "Lá embaixo", disse ele. "Onde você mora?" "Lá embaixo. " "Há muitas casas lá embaixo?" 'Não, só uma. " "Onde ficam as outras casas?" O menino apontou para o outro lado do vale com indiferença, como fazem os meninos da idade dele. Depois, começou a descer a trilha com suas cabras. "Espere", disse eu ao menino. "Estou muito cansado e com fome. Leve-me até onde está sua família."

 "Não tenho família", respondeu o garoto, e isso foi um choque para mim. Não sei por que, mas a voz dele me fez hesitar. O menino, vendo minha hesitação, parou e virou-se para mim. "Não há ninguém em minha casa", disse ele. "Meu tio foi embora e a mulher dele foi para os campos. Tenho muita comida. Muita. Venha comigo. "

 "Eu quase fiquei triste. O menino também era um fantasma. O tom de voz e sua ansiedade o denunciaram. Os fantasmas estavam ali para me pegar mas eu não tinha medo. Eu ainda estava dormente do meu encontro com o aliado. Queria ficar zangado com o aliado ou os fantasmas, mas não conseguia zangar-me como antes e desisti. Depois, quis ficar triste, pois gostei daquele menininho, mas não consegui. Então, desisti disso também.
 "De repente, compreendi que tinha um aliado e que não havia nada que os fantasmas me pudessem fazer. Acompanhei o menino pela trilha. Outros fantasmas apareciam depressa e tentavam fazer-me cair nos precipícios, mas minha vontade era mais forte do que eles. Devem ter sentido isso, pois pararam de me atormentar. Depois de algum tempo, simplesmente se punham a meu lado; de vez em quando, algum deles saltava em meu caminho, mas eu os parava com minha vontade. E então eles deixaram de me aborrecer de todo.”

 Dom Genaro calou-se e ficou quieto por muito tempo. Dom Juan olhou para mim.

 — O que aconteceu depois, Dom Genaro? — perguntei.

 — Continuei a andar — respondeu ele.

 Parecia que ele tinha acabado a história e não havia nada que quisesse acrescentar.

 Perguntei-lhe por que o fato de lhe oferecerem comida era um indício de que eram fantasmas.

 Não respondeu. Sondei-o mais e perguntei se era costume entre os índios mazatecas negarem comida, ou se preocuparem muito com matéria de comida.

 Respondeu que o tom da voz deles, sua ansiedade para atraí-lo e a maneira de os fantasmas falarem a respeito de comida eram os indícios; e que ele sabia disso porque seu aliado o estava ajudando. Falou que, sozinho, nunca teria notado aquelas peculiaridades.

 — Aqueles fantasmas eram aliados, Dom Genaro? — perguntei.

 — Não. Eram pessoas.

 — Pessoas? Mas você disse que eram fantasmas.

 — Disse que não eram mais reais. Depois de meu encontro com o aliado, nada mais era real.

 Ficamos calados por muito tempo.
 — Qual foi o resultado final dessa experiência, Dom Genaro? — perguntei.

 — Resultado final?

 — Quero dizer, você chegou a Ixtlan? Os dois riram ao mesmo tempo.

 — Então para você é esse o resultado final — observou Dom Juan. — Vamos dizer assim, então. Não houve resultado final na viagem de Genaro. Nunca haverá um resultado final. Genaro ainda está a caminho de Ixtlan!

 Dom Genaro olhou para mim de maneira penetrante e depois virou a cabeça para olhar para longe, para o sul.

 — Nunca chegarei a Ixtlan — disse ele. Sua voz era firme mas baixa, quase um murmúrio. — No entanto, em meus sentimentos... em meus sentimentos, às vezes acho que estou a apenas um passo de alcançá-la. No entanto, nunca a alcançarei. Em minha viagem, nem encontro os marcos conhecidos que costumava achar. Nada é igual.

 Dom Juan e Dom Genaro se olharam. Havia algo de muito triste no olhar deles.

 — Em minha viagem a Ixtlan, só encontro viajantes fantasmas — disse ele baixinho.

 Fitei Dom Juan. Não tinha entendido o que Dom Genaro queria dizer.

 — Todos que Genaro encontra em sua viagem a Ixtlan são apenas seres efêmeros — explicou Dom Juan, — Veja você, por exemplo, é um fantasma. Seus sentimentos e sua ansiedade são de pessoas, é por isso que ele diz que só encontra fantasmas em sua viagem para Ixtlan.

 De repente, percebi que a viagem de Dom Genaro era uma metáfora.

 — Sua viagem a Ixtlan então não é real — disse eu.

 — Ela é real! — exclamou Dom Genaro. — Os viajantes é que não são reais.  — Apontou para Dom Juan com a cabeça e disse, com ênfase: — Este é o único que é real. O mundo só é real quando estou com este.

 — Genaro lhe contou a história dele — falou Dom Juan, sorrindo — porque ontem você parou o mundo e ele acha que você também viu, mas você é tão tolo que não sabe disso. Já falei a ele que você é esquisito e que mais cedo ou mais tarde há de ver. De qualquer forma, em seu próximo encontro com o aliado, se houver uma próxima vez para você, terá de lutar com ele e domá-lo. Se sobreviver ao choque, e tenho certeza de que o fará, pois é muito forte e tem vivido como guerreiro, você se encontrará vivo numa outra terra. Então, como é natural com todos nós, a primeira coisa que você vai querer fazer é voltar para Los Angeles. Mas não há meio de voltar para Los Angeles. O que deixou lá está perdido para sempre. Então, é claro, você será um feiticeiro, mas isso não adianta; num momento como esse o importante para todos nós é o fato de que tudo o que amamos ou detestamos ou desejamos ficou para trás. E, no entanto, os sentimentos de um homem não morrem nem mudam, e o feiticeiro começa a sua viagem de volta a casa sabendo que nunca a alcançará, sabendo que nenhum poder na Terra, nem mesmo sua morte o levará ao lugar, às coisas e às pessoas que ele amou. Foi isso que Genaro lhe contou.

 A explicação de Dom Juan agiu como um catalisador; todo o impacto da história de Dom Genaro, de repente, me atingiu, quando comecei a ligar a história à minha própria vida.

 — E as pessoas que eu amo? — perguntei a Dom Juan. — O que lhes aconteceria?

 — Seriam deixadas para trás — disse ele.

 — Mas não há um meio de recuperá-las? Eu não poderia salvá-las e levá-las comigo?

 — Não. Seu aliado o rodopiará, sozinho, em mundos desconhecidos.

 — Mas eu poderia voltar a Los Angeles, não é? Poderia pegar um ônibus, ou um avião, e ir lá. Los Angeles ainda estaria lá, não?

 — Por certo — respondeu Dom Juan, rindo. — E Manteca e Temecula e Tucson.

 — E Tecate — acrescentou Dom Genaro, muito sério.

 — E Piedras Negras e Tranquitas — disse Dom Juan, sorrindo. Dom Genaro acrescentou mais nomes e Dom Juan também; e absorveram-se em enumerar uma série dos nomes mais cômicos e incríveis de cidades.

 — Rodopiar com seu aliado há de mudar sua idéia do mundo — falou Dom Juan. — Essa idéia é tudo; e quando isso muda, o próprio mundo muda.

 Lembrou-me de que uma vez eu lhe lera um poema e quis que eu o recitasse. Deu algumas palavras do poema e eu me recordei de lhe ter lido uns poemas de Juan Ramon Jimenez. Esse especial que ele citava era intitulado El Viaje Definitivo (A Viagem Definitiva). Eu o recitei.
"... e eu partirei. Mas os pássaros ficarão, cantando:
e meu jardim ficará, com sua árvore verdejante,
com seu poço d'água.
Em muitas tardes os céus serão azuis e plácidos,
e os sinos da torre repicarão,
como repicam esta tarde.
Aqueles que me amaram passarão,
e a cidade explodirá de novo cada ano.
Mas meu espírito sempre vagará nostálgico
no mesmo recanto escondido de meu jardim florido. "

 — É esse o sentimento de que fala Genaro — disse Dom Juan. — Para ser feiticeiro, o homem tem de ser apaixonado. Um homem apaixonado tem bens terrenos e coisas queridas... se nada mais, o simples caminho em que anda.

 “O que Genaro lhe contou em sua história é precisamente isso. Genaro deixou sua paixão em Ixtlan: seu lar, sua gente, todas as coisas de que gostava. E agora ele vagueia em seus sentimentos; e, às vezes, como ele diz, quase alcança Ixtlan. Todos nós temos isso em comum. Para Genaro é Ixtlan; para você será Los Angeles; para mim...”.

 Eu não queria que Dom Juan me contasse sobre si. Ele parou como se tivesse lido meus pensamentos, Genaro suspirou e parafraseou as primeiras linhas do poema:

 — Parti. E os pássaros ficaram, cantando.

 Por um momento, senti uma onda de nostalgia e uma indescritível sensação de solidão nos envolvendo. Olhei para Dom Genaro e vi que, como homem apaixonado, ele devia ter tido muitos laços do coração, muitas coisas de que gostava e que deixou para trás. Tive a sensação exata de que, naquele momento, o poder de suas recordações estava a ponto de desabar e que Dom Genaro estava quase chorando.

 Depressa, desviei o olhar. A paixão de Dom Genaro e sua suprema solidão fizeram-me chorar. Olhei para Dom Juan. Estava-me fitando.

 — Só como guerreiro pode-se sobreviver no caminho do conhecimento — disse ele. — Pois a arte de um guerreiro é equilibrar o terror de ser homem com a maravilha de ser homem.

 Olhei para os dois, um de cada vez. Seus olhos eram límpidos e calmos. Tinham evocado uma onda de nostalgia avassaladora e quando pareciam estar a ponto de explodir em lágrimas apaixonadas, dominaram a maré. Por um instante creio que vi. Vi a solidão do homem como uma onda gigantesca que se tinha congelado em minha frente, contida pelo muro invisível de uma metáfora.

 Minha tristeza era tão acabrunhante que eu me sentia eufórico. Abracei-os. Dom Genaro sorriu e levantou-se. Dom Juan também se levantou e pôs a mão em meu ombro.

 — Vamos deixá-lo aqui — disse ele. — Faça o que achar que deve. O aliado o estará esperando na borda daquela planície. — Ele apontou para um vale escuro ao longe. — Se você achar que ainda não está na sua hora, não compareça ao encontro — continuou. — Não se ganha nada forçando a mão. Se quiser sobreviver, você tem de ser de uma limpidez cristalina e mortalmente seguro de si.

 Dom Juan afastou-se sem olhar para mim, mas Dom Genaro virou-se umas duas vezes, insistindo com uma piscadela e um movimento de cabeça para eu ir em frente. Olhei para eles até que desaparecessem ao longe, e depois fui para meu carro e parti. Sabia que ainda não era chegada a minha hora.





Responsabilidade

 Trecho de ''Viagem a Ixtlan'', de Carlos Castañeda (Editora Nova Era).

***
'' De tarde, fomos dar uma volta. Acompanhei o passo dele com facilidade e tornei a assombrar-me com sua extraordinária forma física. Andava tão lepidamente e com passos tão seguros que, junto dele, eu parecia uma criança. Tomamos uma direção para leste. Reparei que ele não gostava de falar enquanto andava. Se eu me dirigia a ele, parava de andar para me responder. 

 Depois de umas duas horas, chegamos a um morro; sentou-se e fez sinal para eu me sentar a seu lado. Declarou, num tom melodramático, que me ia contar uma história.

 Disse que era uma vez um rapaz, um índio miserável, que vivia entre os brancos de uma cidade. Ele não tinha casa, nem parentes, nem amigos. Tinha ido para a cidade para fazer fortuna e só encontrara miséria e dor. De vez em quando, ganhava alguma coisa, trabalhando como um burro, mas aquilo mal dava para uma migalha; do contrário, ele tinha de mendigar ou roubar para poder comer. 

 Dom Juan contou que, um dia, o rapaz foi à feira. Ele subia e descia as ruas meio tonto, os olhos loucos ao verem todas as coisas boas reunidas ali. Ficou tão alucinado que não viu onde pisava e terminou tropeçando numas cestas e caindo por cima de um velho. Este carregava quatro cabaças enormes e tinha acabado de sentar-se para descansar e comer. Dom Juan sorriu, com um ar matreiro, e disse que o velho achou muito estranho que o rapaz tivesse tropeçado nele. Não ficou zangado, e sim assombrado por que motivo aquele determinado rapaz havia de cair em cinta dele. O rapaz, ao contrário, ficou zangado e disse-lhe que saísse de seu caminho. Não estava nada preocupado com o significado daquele encontro. Não tinha reparado que seus caminhos tinham realmente se cruzado. 

 Dom Juan imitou os movimentos de alguém correndo atrás de alguma coisa que está rolando. Disse que as cabaças do velho tinham caído e estavam rolando pela rua. Quando o rapaz viu as cabaças, achou que tinha encontrado comida para aquele dia.

 Ajudou o velho a levantar-se e insistiu em ajudá-lo a carregar ascabaças pesadas. O velho lhe disse que estava a caminho de sua casa nasmontanhas e o rapaz insistiu em ir com ele, pelo menos parte do caminho.O velho tomou o caminho das montanhas e, enquanto caminhavam, deu ao rapaz parte da comida que tinha comprado na feira. O rapaz comeu à grande e, quando ficou satisfeito, reparou como as cabaças eram pesadas e agarrou-as com força. 

 Dom Juan abriu os olhos e, com um sorriso diabólico, falou que o rapaz perguntou: "O que está levando nessas cabaças?" O velho não deu resposta, dizendo que ia levá-lo a um companheiro ou amigo que poderia aliviar as aflições dele e dar-lhe conselhos sábios a respeito das coisas do mundo.

 Dom Juan fez um gesto majestoso com as duas mãos e disse que o velho chamou o cervo mais lindo que o rapaz já vira. O cervo era tão manso que chegou perto dele, andando em volta. Era todo reluzente. O rapaz estava boquiaberto e viu logo que se tratava de um "cervo espírito". O velho então lhe disse que, se ele quisesse ter aquele amigo e sua sabedoria, bastava largar as cabaças.

 O sorriso de Dom Juan retratava a ambição; disse que os desejos mesquinhos do rapaz foram espicaçados ao ouvir aquele pedido. Os olhos de Dom Juan fizeram-se miúdos e diabólicos, ao pronunciar a pergunta do rapaz: "O que é que leva nessas quatro cabaças enormes?"

 Dom Juan disse que o velho serenamente respondeu que estava carregando comida: pinole e água. Ele parou de contar a história e andou em círculo umas duas vezes. Eu não sabia o que ele estava fazendo. Mas parece que era parte da história. O círculo parecia retratar os pensamentos do rapaz.

 Dom Juan disse que, naturalmente, o rapaz não acreditou em nada daquilo. Calculou que, se o velho, que obviamente era um mágico, estava disposto a dar um "cervo espírito" por suas cabaças, então estas deviam estar cheias de um poder inacreditável. Dom Juan tornou a fazer uma careta com um sorriso diabólico e disse que o rapaz tinha declarado que queria ficar com as cabaças. Fez-se uma longa pausa, que pareceu marcar o fim da história. Dom Juan ficou calado e, no entanto, eu tinha certeza de que ele queria que eu lhe perguntasse arespeito, e eu o fiz.

 — O que aconteceu com o rapaz.— Ele ficou com as cabaças — respondeu ele, com um sorriso de satisfação.Outra longa pausa. Eu ri. Pensei que aquela tinha sido bem uma história "de índio". Os olhos de Dom Juan brilharam quando ele me sorriu. Tinha um ar de inocência. Começou a rir aos pouquinhos e me perguntou: — Não quer saber das cabaças?


 — Claro que quero saber. Pensei que era o fim da história. 

 — Ah, não — disse ele, com um olhar malicioso. — O rapaz pegou as cabaças e correu para um lugar isolado e as abriu.

 — O que encontrou? — perguntei. Dom Juan olhou para mim e tive a impressão de que ele estava ciente de minha ginástica mental. Ele sacudiu a cabeça e riu. — E então, — insisti — as cabaças estavam vazias? 

 — Só havia comida e água dentro das cabaças — respondeu. — E o rapaz, num acesso de fúria, despedaçou-as de encontro às pedras.

 Falei que a reação dele era muito natural... qualquer pessoa na situação dele teria feito o mesmo. A resposta de Dom Juan foi que o rapaz era um tolo, que não sabia o que buscava. Não tinha conhecimento do que era o "poder", de modo que não podia dizer se o havia encontrado ou não. Não assumira a responsabilidade por sua decisão e, portanto, ficara com raiva de seu engano. Esperava ganhar alguma coisa, e não ganhou nada. Dom Juan raciocinou que, se eu fosse o tal rapaz e se tivesse seguido minhas inclinações, eu teria acabado zangado e com remorsos e, sem dúvida, passaria o resto da vida com pena de mim mesmo e daquilo que tinha perdido.

 Depois, explicou o procedimento do velho. Espertamente, tinha alimentado o rapaz, para dar-lhe "a audácia da barriga cheia", e assim o rapaz, só encontrando comida nas cabaças, arrebentou-as num acesso de fúria. 

 — Se ele tivesse consciência de sua decisão e assumisse a responsabilidade por ela — falou Dom Juan — teria tomado a comida e ficado mais do que satisfeito com ela. E talvez até tivesse compreendido que aquela comida também era poder.''

Busca

A busca da liberdade é a única força que eu conheço. 



 Liberdade de voar até aquele infinito lá fora. Liberdade para se dissolver; para decolar; para ser como a chama de uma vela que, mesmo diante da luz de um bilhão de estrelas, permanece intacta, porque jamais pretendeu ser mais do que é: uma simples vela.” 

 

(Carlos Castañeda)

Os Quatro Inimigos


O trecho a seguir foi retirado do livro ''A Erva do Diabo'', e relata o fim de uma das visitas que o antropólogo Carlos Castañeda fez ao brujo Juan Matus em sua casa, no México, durante o início de seu aprendizado sobre a proposta de sistema cognitivo dos xamãs. 


Domingo 15 de abril de 1962


Quando eu estava me preparando para partir, tornei a lhe perguntar acerca dos inimigos do homem de conhecimento. Argumentei que ia passar algum tempo sem voltar, e que seria uma boa idéia escrever as coisas que ele tivesse a dizer e pensar a respeito enquanto estivesse fora. Hesitou um pouco, mas depois começou a falar:

- Quando um homem começa a aprender, ele nunca sabe muito claramente quais seus objetivos. Seu propósito é falho; sua intenção, vaga. Espera recompensas que nunca se materializarão, pois não conhece nada das dificuldades da aprendizagem.

“Devagar, ele começa a aprender… a princípio, pouco a pouco, e depois em porções grandes. E logo seus pensamentos entram em choque. O que aprende nunca é o que ele imaginava, de modo que começa a ter medo. Aprender nunca é o que se espera. Cada passo da aprendizagem é uma nova tarefa, e o medo que o homem sente começa a crescer impiedosamente, sem ceder. Seu propósito torna-se um campo de batalha.

“E assim ele se deparou com o primeiro de seus inimigos naturais: o Medo! Um inimigo terrível, traiçoeiro, e difícil de vencer. Permanece oculto em todas as voltas do caminho, rondando, à espreita. E se o homem, apavorado com sua presença, foge, seu inimigo terá posto um fim à sua busca.

- O que acontece ao homem se ele fugir com medo?

- Nada lhe acontece, a não ser que nunca aprenderá. Nunca se tornará um homem de conhecimento. Talvez se torne um tirano, ou um pobre homem apavorado e inofensivo; de qualquer forma, será um homem vencido. Seu primeiro inimigo terá posto um fim a seus desejos.

- E o que pode ele fazer para vencer o medo?

- A resposta é muito simples. Não deve fugir. Deve desafiar o medo, e, a despeito dele, deve dar o passo seguinte na aprendizagem, e o seguinte, e o seguinte. Deve ter medo, plenamente, e no entanto não deve parar. É esta a regra! E o momento chegará em que seu primeiro inimigo recua. O homem começa a se sentir seguro de si. Seu propósito torna-se mais forte. Aprender não é mais uma tarefa aterradora. Quando chega esse momento feliz, o homem pode dizer sem hesitar que derrotou seu primeiro inimigo natural.

- E isso acontece de uma vez, Don Juan, ou aos poucos?

- Acontece aos poucos e no entanto o medo é vencido da repente e depressa.

- Mas o homem não terá medo outra vez, se lhe acontecer alguma coisa nova?

- Não. Uma vez que o homem venceu o medo, fica livre dele o resto da vida, porque, em vez do medo, ele adquiriu a clareza de espírito que apaga o medo. Então, o homem já conhece seus desejos; sabe como satisfazê-los. Pode antecipar os novos passos na aprendizagem e uma clareza viva cerca tudo. O homem sente que nada se lhe oculta.

“E assim ele encontra seu segundo inimigo: a Clareza! Essa clareza de espírito, que é tão difícil de obter, elimina o medo, mas também cega.

“Obriga o homem a nunca duvidar de si. Dá-lhe a segurança de que ele pode fazer o que bem entender, pois ele vê tudo claramente. E ele é corajoso porque é claro e não pára diante de nada porque é claro. Mas tudo isso é um engano; é como uma coisa incompleta. Se o homem sucumbir a esse poder de faz-de-conta, sucumbiu a seu segundo inimigo e tateará com a aprendizagem. Vai precipitar-se quando devia ser paciente, ou vai ser paciente quando devia precipitar-se. E tateará com a aprendizagem até acabar incapaz de aprender mais qualquer coisa.

- O que acontece com um homem que é derrotado assim, Dom Juan? Ele morre por isso?

- Não, não morre. Seu inimigo acaba de impedi-lo de se tornar um homem de conhecimento; em vez disso, o homem pode tornar-se um guerreiro valente, ou um palhaço.

“No entanto, a clareza, pela qual ele pagou tão caro, nunca mais se transformará de novo em trevas ou medo. Será claro enquanto viver, mas não aprenderá nem desejará nada.

- Mas o que tem de fazer para não ser vencido?

- Tem de fazer o que fez com o medo: tem de desafiar sua clareza e usá-la só para ver, e esperar com paciência e medir com cuidado antes de dar novos passos; deve pensar, acima de tudo, que sua clareza é quase um erro. E virá um momento em que ele compreenderá que sua clareza era apenas um ponto diante de sua vista. E assim ele terá vencido seu segundo inimigo, e estará numa posição em que nada mais poderá prejudicá-lo. Isso não será um engano. Não será um ponto diante da vista. Será o verdadeiro poder.

“Ele saberá a essa altura que o poder que vem buscando há tanto tempo é seu, por fim.

Pode fazer o que quiser com ele. Seu aliado está às suas ordens. Seu desejo é a ordem. Vê tudo o que está em volta. Mas também encontrou seu terceiro inimigo: o Poder!

“O poder é o mais forte de todos os inimigos. E naturalmente a coisa mais fácil é ceder; afinal de contas, o homem é realmente invencível. Ele comanda; começa correndo riscos calculados e termina estabelecendo regras, porque é um senhor.

“Um homem nesse estágio quase nem nota seu terceiro inimigo se aproximando. E de repente, sem saber, certamente terá perdido a batalha. Seu inimigo o terá transformado num homem cruel e caprichoso.

- E ele perderá o poder?

- Não, ele nunca perderá sua clareza nem seu poder.

- Então o que o distinguirá de um homem de conhecimento?

- Um homem que é derrotado pelo poder morre sem realmente saber manejá-lo. O poder é apenas uma carga em seu destino. Um homem desses não tem domínio sobre si, e não sabe quando ou como usar seu poder.

- A derrota por algum desses inimigos é uma derrota final?

- Claro que é final. Uma vez que esses inimigos dominem o homem, não há nada que ele possa fazer.

- Será possível, por exemplo, que o homem derrotado pelo poder veja seu erro e se emende?

- Não. Uma vez que o homem cede, está liquidado.

- Mas, e se ele estiver temporariamente cego pelo poder, e depois o recusar?

- Isso significa que a batalha continua. Isso significa que ele ainda está tentando ser um homem de conhecimento. O indivíduo é derrotado quando não tenta mais e se abandona.

- Mas então, Dom Juan, será possível que um homem se entregue ao medo durante anos, mas que no fim ele o vença.

- Não, isso não é verdade. Se ele ceder ao medo, nunca o vencerá porque se desviará do conhecimento e nunca mais tentará. Mas se procurar aprender durante anos no meio do medo, acabará dominando-o, porque nunca se entregou realmente a ele.

- E como o homem pode vencer seu terceiro inimigo, Dom Juan?

- Também tem de desafiá-lo, propositadamente. Tem de vir a compreender que o poder que parece ter adquirido na verdade nunca é seu. Deve controlar-se em todas as ocasiões, tratando com cuidado e lealdade tudo o que aprendeu. Se conseguir ver que a clareza e o poder, sem seu controle sobre si, são piores do que os erros, ele chegará a um ponto em que tudo estará controlado. Então saberá quando e como usar seu poder. E assim terá derrotado seu terceiro inimigo.

“O homem estará, então, no fim de sua jornada do saber, e quase sem perceber encontrará seu último inimigo: a Velhice! Este inimigo é o mais cruel de todos, o único que ele não conseguirá derrotar completamente, mas apenas afastar.

“É o momento em que o homem não tem mais receios, não tem mais impaciências de clareza de espírito… um momento em que todo seu poder está controlado, mas também o momento em que ele sente um desejo irresistível de descansar. Se ele ceder completamente a seu desejo de se deitar e esquecer, se ele se afundar na fadiga, terá perdido o último round, e seu inimigo o reduzirá a uma criatura velha e débil. Seu desejo de se retirar dominará toda sua clareza, seu poder e sabedoria.

“Mas se o homem sacode sua fadiga, e vive seu destino completamente, então poderá ser chamado de um homem de conhecimento, nem que seja no breve momento em que ele consegue lutar contra o seu último inimigo invencível. Esse momento de clareza, poder e conhecimento é o suficiente.”

Un Camino Con Corazón

Segunda-feira, 28 de janeiro de 1963, diálogo entre Carlos Castañeda e D. Juan:



''- … Há um meio especial de se evitar o sofrimento?

- Sim, há um meio.

- É uma fórmula, um processo, ou o quê?

- É um modo de se agarrar às coisas. Por exemplo, quando eu estava aprendendo a respeito da erva-do-diabo, era por demais ansioso. Agarrava as coisas assim como as crianças agarram bala. A erva-do-diabo é apenas um entre um milhão de caminhos. Tudo é um entre um milhão de caminhos
(un camino entre cantidades de caminos). Portanto, você deve sempre manter em mente que um caminhoo é mais do que um caminho; se achar que não deve segui-lo, não deve permanecer nele, sob nenhuma circunstância. Para ter uma clareza dessas, é preciso levar uma vida disciplinada. Só então você saberá que qualquer caminhoo passa de um caminho, e não há afronta, para si nem para os outros, em largá-lo se é isso o que seu coração lhe manda fazer. Mas sua decisão de continuar no caminho ou largá-lo deve ser isenta de medo e de ambição. Eu lhe aviso. Olhe bem para cada caminho, e com propósito. Experimente-o tantas vezes quanto achar necessário. Depois, pergunte-se, e só a si, uma coisa. Essa pergunta é uma que só os muito velhos fazem. Meu benfeitor certa vez me contou a respeito, quando eu era jovem, e meu sangue era forte demais para poder entendê-la. Agora eu a entendo. Dir-lhe-ei qual é: esse caminho tem coração? Todos os caminhos são os mesmos: não conduzem a lugar algum. São caminhos que atravessam o mato, ou que entram no mato. Em minha vida posso dizer que já passei por caminhos compridos, mas não estou em lugar algum. A pergunta de meu benfeitor agora tem um significado. Esse caminho tem um coração? Se tiver, o caminho é bom; se não tiver, não presta. Ambos os caminhos não conduzem a parte alguma; mas um tem coração e o outro não. Um torna a viagem alegre; enquanto você o seguir, será um com ele. O outro o fará maldizer sua vida. Um o torna forte; o outro o enfraquece."

Trecho do livro ''A Erva do Diabo'',
de Carlos Castañeda