À Esquerda, Um Braço De Distância

 O texto a seguir foi retirado do livro Viagem A Ixtlan (Editora Nova Era), de Carlos Castañeda. Relata um dos ensinamentos do feiticeiro índio de Sonora, México, Don Juan Matus, registrado pelo estudante de antropologia da Universidade da Califórnia, durante a década de 1960.

 Estavam em uma de suas longas caminhadas pelo deserto.

***

 (...) Disse-me para virar com naturalidade e olhar para uma pedra à esquerda. Disse que minha morte estava ali olhando para mim e que, se me virasse quando ele fizesse sinal, eu poderia vê-la. Fez-me sinal com os olhos. Eu me virei e pensei ver um rápido movimento por cima da pedra. Um calafrio me percorreu o corpo, os músculos de meu abdômen se contraíram involuntariamente e eu senti uma sacudidela, um espasmo. Depois de um momento, controlei-me e expliquei a sensação de ter visto a sombra fugaz como uma ilusão de óptica provocada por ter virado a cabeça tão abruptamente.

 — A morte é nossa eterna companheira — falou Dom Juan, com um ar muito sério. — Está sempre à nossa esquerda, à distância de um braço. Ela o estava espreitando quando você observava o falcão branco; sussurrou em seu ouvido e você sentiu o frio dela, como hoje. Ela sempre o espreitou. Sempre o fará, até o dia em que o tocar.

 Estendeu o braço e me tocou de leve no ombro, estalando ao mesmo tempo a língua. O efeito foi devastador; eu quase vomitei.— Você é o menino que seguia a caça e esperou pacientemente, como a morte espera; sabe bem que a morte está à nossa esquerda, assim como você estava à esquerda do falcão branco. As palavras dele tiveram o estranho poder de me lançar num terror inexplicável; minha única defesa foi o impulso de escrever tudo o que ele dizia.

 — Como é que alguém pode sentir-se tão importante quando sabe que a morte está no seu encalço? — perguntou ele. Tinha a impressão de que minha resposta não era realmente necessária. Eu não podia ter dito nada, mesmo. Um novo estado de espírito me dominara.

 — O que se deve fazer quando se é impaciente — continuou ele — é virar-se para a esquerda e pedir conselhos a sua morte. Você perderá uma quantidade enorme de mesquinhez se sua morte lhe fizer um gesto, ou se a vir de relance, ou se, ao menos, tiver a sensação de que sua companheira está ali, vigiando-o.

 Tornou a debruçar-se e cochichou em meu ouvido que, se eu me virasse para a esquerda de repente, ao seu sinal, tornaria a ver minha morte na pedra. Seus olhos me fizeram um sinal quase imperceptível, mas não ousei olhar. Disse-lhe que acreditava nele e que não precisava insistir mais naquilo, pois eu estava apavorado. Deu uma de suas gargalhadas ruidosas.

 Respondeu que o assunto da morte nunca era abordado demais. Argumentei que seria inútil eu meditar sobre minha morte, pois essa ideia só me traria incômodo e medo. — Você é cheio de besteiras! — exclamou. — A morte é a única conselheira sábia que possuímos. Toda vez que sentir, como sente sempre, que está tudo errado e você está prestes a ser aniquilado, vire-se para sua morte e pergunte se é verdade. Ela lhe dirá que você está errado; que nada importa realmente, além do toque dela. Sua morte lhe dirá: "Ainda não o toquei".

 Sacudiu a cabeça e parecia estar esperando minha resposta. Eu não tinha nenhuma. Meus pensamentos estavam numa carreira desenfreada. Ele desfechara um golpe tremendo em meu egocentrismo. A mesquinharia de me aborrecer com ele era monstruosa, à luz de minha morte. Tinha a impressão de que ele estava plenamente consciente de minha mudança de disposição. Dom Juan virara a maré a seu favor. Sorriu  e  começou  a  cantarolar  uma  canção  mexicana.

 — Sim — disse ele, baixinho, depois de uma longa pausa. — Um de nós dois tem de mudar, e depressa. Um de nós dois tem de tornar a aprender que a morte é a caçadora e que está sempre à nossa esquerda. Um de nós dois tem de pedir conselhos à morte e largar as malditas mesquinharias que são próprias dos homens que vivem suas vidas como se a morte nunca os viesse tocar.

***

Gafanhoto


- Você não pode ver.

- Pensa que não posso ver?

- De todas as coisas, viver na escuridão deve ser a pior.

- O medo é a única escuridão.




- Nunca presuma que um homem cego não possa ver. Feche os olhos. O que você ouve?

- Eu ouço a água; eu ouço os pássaros.

- Você ouve seu próprio coração bater?

- Não.

- Você ouve o gafanhoto que está a seus pés?

- Velho, como é que você ouve essas coisas?

- Jovem, como é que você não ouve?