Quis Ir Para Bem Longe



Quis ir pra bem longe
Da mentira gasta e sibilante
E do grito contínuo do terror antigo
Que fica mais terrível enquanto o dia
Atravessa o morro e mergulha no mar


Quis ir pra bem longe
Mas tenho medo
Alguma vida nova pode explodir
Da velha mentira que arde no chão
E estalando no ar me deixar meio cego.




(Dylan Thomas)

A Loucura Controlada

 Trecho de Uma Estranha Realidade, do antropólogo Carlos Castañeda, no qual é abordado o tema da ''loucura controlada''. Segundo o bruxo Juan Matus, tudo o que fazemos, pensamos e sentimos; todas as nossas atividades e crenças, são apenas escudos, véus que colocamos diante dos olhos para pouparmo-nos de encarar o fundo dos abismos de nossa própria natureza misteriosa.

 Um dos efeitos colaterais mais embaraçosos causados por nossos ''escudos'' é que nos tornamos tão dependentes deles, tão obcecados por nossas rotinas, que os tomamos a sério demais.

 A loucura controlada é o comportamento que o guerreiro adota diante de situações em que precisa interagir com seus semelhantes, em que ele age impecavelmente mesmo quando não se importa com o que faz. É um meio de agir livre de obsessões. Controlar a loucura social, agindo de forma consciente e não por impulso, é uma das artes da feitiçaria.

 ***

'' Eu estava ajudando-o a limpar umas ervas secas. Trabalhamos num silêncio total por muito tempo. Quando sou forçado a permanecer calado por muito tempo, fico apreensivo, especialmente junto de Dom Juan. Num dado momento, fiz-lhe uma pergunta, num rompante impulsivo, quase truculento.

 — Como é que um homem de conhecimento pratica a loucura controlada, quando se trata da morte de uma pessoa que ele ama?


 Dom Juan foi colhido de surpresa por minha pergunta e olhou para mim de modo estranho.


 — Veja seu neto, Lúcio, por exemplo — disse eu. — Seus atos seriam loucura controlada, no momento da morte dele?


 — Veja meu filho Eulálio, é um exemplo melhor  —  respondeu Dom Juan, calmamente. — Foi esmagado pelas pedras quando trabalhava na construção da Estrada de Rodagem Pan-Americana. Meus atos para com ele no momento de sua morte foram loucura controlada. Quando cheguei à área das explosões, ele estava quase morto, mas o corpo dele era tão forte que continuava a se mexer e dar pontapés. Fiquei diante dele e disse aos rapazes da turma da estrada para não mexerem mais nele; obedeceram-me e ficaram ali em volta de meu filho, olhando para o corpo estraçalhado. Também fiquei ali, mas não olhei. Desviei os olhos para poder ver sua vida pessoal se desintegrando, expandindo-se incontrolavelmente além de seus limites, como uma neblina de cristais, pois é assim que a vida e a morte se misturam e expandem. Foi o que fiz no momento da morte de meu filho. É só isso que se poderia fazer, e isso é loucura controlada. Se eu tivesse olhado para ele, teria visto que ele ficava imóvel e teria sentido um grito dentro de mim, pois nunca mais havia eu de ver sua bela figura andando pela terra. Em vez disso, eu vi a morte dele, e não houve tristeza, nem sentimento algum. Sua morte foi igual a tudo o mais.


 Dom Juan ficou calado por algum tempo. Parecia triste, mas depois sorriu e bateu na minha cabeça.


 — Por isso você pode dizer que, quando se trata da morte de uma pessoa que eu amo, minha loucura controlada consiste em desviar o olhar.

 Pensei nas pessoas que eu mesmo amo, e uma onda de autocomiseração terrivelmente opressiva me envolveu.


 — Sorte a sua, Dom Juan — falei. — Pode desviar o olhar, mas eu só posso olhar.


 Ele achou graça naquilo e riu.


 — Sorte, uma bosta! É trabalho duro.


 Nós dois rimos.''


Mas Os Pássaros Ficarão, Cantando


 Nesta postagem encontra-se um trecho do livro ''Viagem a Ixtlan'', do antropólogo Carlos Castañeda. Neste trecho do último capítulo, Castañeda ouve do feiticeiro Don Genaro Flores a história do dia em que conquistou seu aliado, um tipo mágico de criatura que vaga pelo mundo e que, se capturado, torna-se um com o homem.

***



 Pedi-lhe que me contasse. Dom Genaro levantou-se, esticou os braços e as costas. Seus ossos fizeram um barulho estalado. Então, ele tornou a sentar-se.

 — Eu era rapazinho quando abordei meu aliado pela primeira vez — disse ele, por fim, — Lembro-me de que foi no princípio da tarde. Eu estava nos campos desde o raiar do dia e voltava para casa. De repente, o aliado apareceu por trás de um arbusto e me trancou o caminho. Estivera-me esperando e estava-me convidando para lutar com ele. Comecei a me virar, para deixá-lo em paz, mas ocorreu-me a idéia de que eu era suficientemente forte para poder enfrentá-lo. Mas eu estava com medo. Senti um calafrio pela espinha, e meu pescoço ficou duro como uma tábua. Por falar nisso, esse é sempre o sinal de que a pessoa está pronta, quero dizer, quando o pescoço fica duro.

 Abriu a camisa e me mostrou as costas. Enrijeceu os músculos do pescoço, costas e braços. Observei a qualidade magnífica da musculatura dele. Era como se a recordação do encontro tivesse ativado todos os músculos do torso dele.

 — Nessa situação — continuou — você deve sempre fechar a boca. — Virou-se para Dom Juan e perguntou: — Não é verdade?

 — Sim — respondeu Dom Juan, calmamente. — O choque que a pessoa leva ao agarrar um aliado é tão grande que pode morder a língua ou quebrar os dentes. O corpo deve estar ereto e bem apoiado e os pés têm que agarrar a terra.

 Dom Genaro levantou-se e me mostrou a posição correta: o corpo ligeiramente dobrado nos joelhos, os braços dependurados dos lados, com os dedos levemente enroscados. Ele parecia relaxado e, no entanto, firmemente fixo no solo. Ficou um instante naquela posição e quando pensei que ia sentar-se, ele de repente avançou para a frente num salto formidável, como se tivesse molas nos calcanhares. Seu movimento foi tão repentino que eu caí de costas; mas, ao cair, tive a impressão nítida de que Dom Genaro havia agarrado um homem, ou algo com a forma de um homem.
 Tornei a sentar-me. Dom Genaro mantinha ainda uma tensão extraordinária em todo o corpo, e depois relaxou os músculos abruptamente e voltou para onde tinha estado sentado antes e acomodou-se.

 — Carlos acabou de ver seu aliado agora — observou Dom Juan, com displicência — mas ele ainda está fraco, e caiu.

 — Foi mesmo? — perguntou Dom Genaro, num tom ingênuo, e dilatou as narinas.

 Dom Juan assegurou que eu o tinha "visto". Dom Genaro tornou a saltar para a frente com tanta força que eu caí de lado. Executou seu salto com tanta rapidez que eu não sabia mesmo como 6 que ele se tinha posto de pé para poder pular para a frente.

 Ambos riram muito e então Dom Genaro mudou seu riso para um uivo igualzinho ao de um coiote.

 — Não pense que você tem de saltar tão bem quanto Genaro para poder agarrar seu aliado — disse Dom Juan, num tom de voz da advertência. — Genaro salta assim porque tem o aliado dele que o ajuda. Basta você ficar bem firme no chão a fim de suportar o impacto. Tem de se pôr de pé exatamente como estava Genaro antes de saltar, e depois tem de pular para a frente e agarrar o aliado.

 — Primeiro, tem de beijar sua medalha — interrompeu Dom Genaro.

 Dom. Juan, com uma severidade fingida, disse que eu não tinha medalhas.

 — E os cadernos dele? — insistiu Dom Genaro. — Tem de fazer alguma coisa com eles... largá-los em algum lugar antes de saltar, ou talvez ele use os cadernos para dar no aliado.

 — Que diabo! — exclamou Dom Juan, com uma surpresa aparentemente sincera, — Nunca pensei nisso. Aposto que será a primeira vez que um aliado é derrubado por cadernos.

 Quando os risos de Dom Juan e os uivos de coiote de Dom Genaro cessaram, estávamos todos de muito bom humor.

 — O que aconteceu quando agarrou seu aliado, Dom Genaro? — perguntei.

 — Foi um choque violento — disse Dom Genaro, depois de hesitar um momento. Ele parecia estar concatenando seus pensamentos.

 “Nunca imaginei que fosse assim — continuou, — Era uma coisa, uma coisa, uma coisa... como nada que eu possa dizer. Depois que o agarrei, começamos a girar. O aliado me fez girar, mas eu não o larguei. Rodopiamos pelo ar com tanta força que eu nem via mais nada. Tudo estava nublado. O rodopio continuou por muito tempo. De repente, senti que estava de pé no chão outra vez. Olhei para mim. O aliado não me matara. Eu estava inteiro, eu era eu! Então, vi que obtivera êxito. Afinal, eu tinha um aliado. Pulei para cima e para baixo de prazer. Que sensação! Que sensação foi aquela!”.

 "Depois, olhei em volta, para ver onde me encontrava. O lugar me era desconhecido. Achei que o aliado devia ter-me carregado pelo ar e me atirado em algum lugar muito longe de onde começamos a rodopiar. Orientei-me. Achei que minha casa devia estar para leste, por isso comecei a caminhar naquela direção. Ainda era cedo. O encontro com o aliado não tinha durado muito tempo. Logo encontrei uma trilha e então vi um grupo de homens e mulheres vindo em minha direção. Eram índios. Achei que eram índios mazatecas. Rodearam-me e perguntaram para onde eu ia "Vou para Ixtlan", disse eu. "Está perdido?", perguntou alguém. "Estou", respondi. "Por quê?", indagou o mesmo índio. "Porque Ixtlan não fica nessa direção. Ixtlan fica na direção oposta. Nós também vamos para lá", disse outra pessoa. "Venha conosco!", disseram todos. "Temos comida!"

 Dom Genaro parou de falar e olhou para mim como se estivesse esperando que eu fizesse uma pergunta.

 — E então, o que aconteceu? — perguntei. — Foi com eles?

 — Não fui, não — respondeu. — Porque eles não eram reais. Vi logo, no minuto em que chegaram perto de mim. Havia alguma coisa em suas vozes, em sua simpatia, que os denunciou, especialmente quando me convidaram para ir com eles. Por isso, eu fugi. Eles me chamaram e pediram que eu voltasse. Os chamados deles me tentavam, mas continuei fugindo.

 — Quem eram? — perguntei.

 — Gente — respondeu Dom Genaro, numa voz cortante. — Só que não eram reais.

 — Eram como aparições — explicou Dom Juan. — Como fantasmas.

 — Depois de caminhar um pouco — continuou Dom Genaro — fiquei mais confiante. Eu sabia que Ixtlan ficava na direção em que eu ia. E então vi dois homens descendo a trilha em minha direção. Eles também pareciam índios mazatecas. Tinham um burro carregado de lenha. Passaram por mim e murmuraram "Boa tarde. " "Boa tarde!", respondi, e segui andando. Eles não me deram atenção e continuaram seu caminho. Diminuí a marcha e me virei com naturalidade para olhar para eles. Estavam-se afastando, sem se preocupar comigo. Pareciam reais, Corri atrás deles e gritei: "Esperem! Esperem!" Eles seguraram o burro e ficaram um de cada lado do animal, como se estivessem protegendo sua carga. "Estou perdido nestas montanhas", disse-lhes. "Para onde fica Ixtlan?" Eles apontaram na direção em que iam. "Você está muito longe", falou um deles. "Fica do outro lado dessas montanhas. Vai levar uns quatro ou cinco dias para chegar lá." Neste momento, eles se viraram e continuaram a andar. Achei que eram índios de verdade e pedi que me deixassem ir com eles.

 “Caminhamos juntos um pouco e depois um deles, pegou seu farnel de comida e me ofereceu um pouco. Eu fiquei gelado. Havia alguma coisa terrivelmente estranha na maneira de ele me oferecer a comida. Meu corpo assustou-se, de modo que dei um salto para trás e comecei a fugir correndo. Ambos disseram que eu ia morrer nas montanhas se não fosse com eles e tentaram persuadir-me a acompanhá-los. Seus pedidos também eram muito tentadores, mas eu fugi deles a toda pressa.

 “Continuei a andar. Então, eu sabia que estava no caminho certo para Ixtlan e que aqueles fantasmas estavam querendo tentar-me para me afastar do caminho”.

 "Encontrei mais oito deles; devem ter visto que meu propósito era inabalável. Ficavam ao lado da estrada e me olhavam com olhos suplicantes. A maioria nem dizia nada; mas as mulheres eram mais audaciosas e me pediam. Algumas chegaram a mostrar comida e outras coisas que diziam estar vendendo, como vendedoras inocentes de beira de estrada. Não parei, nem olhei para eles.

 "De tardinha, cheguei a um vale que eu achei que conhecia. Por algum motivo, parecia familiar. Achei que já tinha estado ali, mas, se fosse assim, eu estava realmente ao sul de Ixtlan. Comecei a procurar marcos na paisagem para poder orientar-me direito e corrigir meu rumo, quando vi um indiozinho cuidando de umas cabras. Ele tinha talvez seus sete anos e estava vestido como eu me vestia quando era da idade dele. De fato, ele me lembrava a mim mesmo cuidando das duas cabras de meu pai.

 "Fiquei olhando para ele um pouco; o menino estava falando sozinho, assim como eu costumava fazer, e depois falava com as cabras. Do que eu sabia de cuidar de cabras, ele era bom naquilo. Era meticuloso e cuidadoso. Não as mimava, mas também não era malvado com elas.

 "Resolvi chamá-lo. Quando falei com ele em voz alta, deu um salto e fugiu para uma pedra, espiando para mim por detrás das pedras. Parecia estar pronto para fugir à toda. Gostei dele. Parecia estar com medo, mas ainda encontrou tempo para conduzir suas cabras para longe de mim.

 "Falei muito tempo com ele; disse que estava perdido e que não sabia o caminho para Ixtlan. Perguntei o nome do lugar em que estávamos e ele disse que era o lugar que eu pensava que fosse. Isso me deixou muito contente. Vi que não estava mais perdido e pensei no poder que meu aliado tinha, para transportar meu corpo assim tão longe num piscar de olhos.

 "Agradeci ao menino e comecei a me afastar. Ele saiu calmamente de seu esconderijo e conduziu suas cabras para uma trilha quase invisível. A trilha parecia levar para o vale. Chamei o menino e ele não fugiu. Caminhei para junto dele e ele pulou para dentro de uma moita, quando me aproximei demais. Elogiei-o por ser tão cauteloso e comecei a fazer mais perguntas: "Aonde leva essa trilha?", perguntei. "Lá embaixo", disse ele. "Onde você mora?" "Lá embaixo. " "Há muitas casas lá embaixo?" 'Não, só uma. " "Onde ficam as outras casas?" O menino apontou para o outro lado do vale com indiferença, como fazem os meninos da idade dele. Depois, começou a descer a trilha com suas cabras. "Espere", disse eu ao menino. "Estou muito cansado e com fome. Leve-me até onde está sua família."

 "Não tenho família", respondeu o garoto, e isso foi um choque para mim. Não sei por que, mas a voz dele me fez hesitar. O menino, vendo minha hesitação, parou e virou-se para mim. "Não há ninguém em minha casa", disse ele. "Meu tio foi embora e a mulher dele foi para os campos. Tenho muita comida. Muita. Venha comigo. "

 "Eu quase fiquei triste. O menino também era um fantasma. O tom de voz e sua ansiedade o denunciaram. Os fantasmas estavam ali para me pegar mas eu não tinha medo. Eu ainda estava dormente do meu encontro com o aliado. Queria ficar zangado com o aliado ou os fantasmas, mas não conseguia zangar-me como antes e desisti. Depois, quis ficar triste, pois gostei daquele menininho, mas não consegui. Então, desisti disso também.
 "De repente, compreendi que tinha um aliado e que não havia nada que os fantasmas me pudessem fazer. Acompanhei o menino pela trilha. Outros fantasmas apareciam depressa e tentavam fazer-me cair nos precipícios, mas minha vontade era mais forte do que eles. Devem ter sentido isso, pois pararam de me atormentar. Depois de algum tempo, simplesmente se punham a meu lado; de vez em quando, algum deles saltava em meu caminho, mas eu os parava com minha vontade. E então eles deixaram de me aborrecer de todo.”

 Dom Genaro calou-se e ficou quieto por muito tempo. Dom Juan olhou para mim.

 — O que aconteceu depois, Dom Genaro? — perguntei.

 — Continuei a andar — respondeu ele.

 Parecia que ele tinha acabado a história e não havia nada que quisesse acrescentar.

 Perguntei-lhe por que o fato de lhe oferecerem comida era um indício de que eram fantasmas.

 Não respondeu. Sondei-o mais e perguntei se era costume entre os índios mazatecas negarem comida, ou se preocuparem muito com matéria de comida.

 Respondeu que o tom da voz deles, sua ansiedade para atraí-lo e a maneira de os fantasmas falarem a respeito de comida eram os indícios; e que ele sabia disso porque seu aliado o estava ajudando. Falou que, sozinho, nunca teria notado aquelas peculiaridades.

 — Aqueles fantasmas eram aliados, Dom Genaro? — perguntei.

 — Não. Eram pessoas.

 — Pessoas? Mas você disse que eram fantasmas.

 — Disse que não eram mais reais. Depois de meu encontro com o aliado, nada mais era real.

 Ficamos calados por muito tempo.
 — Qual foi o resultado final dessa experiência, Dom Genaro? — perguntei.

 — Resultado final?

 — Quero dizer, você chegou a Ixtlan? Os dois riram ao mesmo tempo.

 — Então para você é esse o resultado final — observou Dom Juan. — Vamos dizer assim, então. Não houve resultado final na viagem de Genaro. Nunca haverá um resultado final. Genaro ainda está a caminho de Ixtlan!

 Dom Genaro olhou para mim de maneira penetrante e depois virou a cabeça para olhar para longe, para o sul.

 — Nunca chegarei a Ixtlan — disse ele. Sua voz era firme mas baixa, quase um murmúrio. — No entanto, em meus sentimentos... em meus sentimentos, às vezes acho que estou a apenas um passo de alcançá-la. No entanto, nunca a alcançarei. Em minha viagem, nem encontro os marcos conhecidos que costumava achar. Nada é igual.

 Dom Juan e Dom Genaro se olharam. Havia algo de muito triste no olhar deles.

 — Em minha viagem a Ixtlan, só encontro viajantes fantasmas — disse ele baixinho.

 Fitei Dom Juan. Não tinha entendido o que Dom Genaro queria dizer.

 — Todos que Genaro encontra em sua viagem a Ixtlan são apenas seres efêmeros — explicou Dom Juan, — Veja você, por exemplo, é um fantasma. Seus sentimentos e sua ansiedade são de pessoas, é por isso que ele diz que só encontra fantasmas em sua viagem para Ixtlan.

 De repente, percebi que a viagem de Dom Genaro era uma metáfora.

 — Sua viagem a Ixtlan então não é real — disse eu.

 — Ela é real! — exclamou Dom Genaro. — Os viajantes é que não são reais.  — Apontou para Dom Juan com a cabeça e disse, com ênfase: — Este é o único que é real. O mundo só é real quando estou com este.

 — Genaro lhe contou a história dele — falou Dom Juan, sorrindo — porque ontem você parou o mundo e ele acha que você também viu, mas você é tão tolo que não sabe disso. Já falei a ele que você é esquisito e que mais cedo ou mais tarde há de ver. De qualquer forma, em seu próximo encontro com o aliado, se houver uma próxima vez para você, terá de lutar com ele e domá-lo. Se sobreviver ao choque, e tenho certeza de que o fará, pois é muito forte e tem vivido como guerreiro, você se encontrará vivo numa outra terra. Então, como é natural com todos nós, a primeira coisa que você vai querer fazer é voltar para Los Angeles. Mas não há meio de voltar para Los Angeles. O que deixou lá está perdido para sempre. Então, é claro, você será um feiticeiro, mas isso não adianta; num momento como esse o importante para todos nós é o fato de que tudo o que amamos ou detestamos ou desejamos ficou para trás. E, no entanto, os sentimentos de um homem não morrem nem mudam, e o feiticeiro começa a sua viagem de volta a casa sabendo que nunca a alcançará, sabendo que nenhum poder na Terra, nem mesmo sua morte o levará ao lugar, às coisas e às pessoas que ele amou. Foi isso que Genaro lhe contou.

 A explicação de Dom Juan agiu como um catalisador; todo o impacto da história de Dom Genaro, de repente, me atingiu, quando comecei a ligar a história à minha própria vida.

 — E as pessoas que eu amo? — perguntei a Dom Juan. — O que lhes aconteceria?

 — Seriam deixadas para trás — disse ele.

 — Mas não há um meio de recuperá-las? Eu não poderia salvá-las e levá-las comigo?

 — Não. Seu aliado o rodopiará, sozinho, em mundos desconhecidos.

 — Mas eu poderia voltar a Los Angeles, não é? Poderia pegar um ônibus, ou um avião, e ir lá. Los Angeles ainda estaria lá, não?

 — Por certo — respondeu Dom Juan, rindo. — E Manteca e Temecula e Tucson.

 — E Tecate — acrescentou Dom Genaro, muito sério.

 — E Piedras Negras e Tranquitas — disse Dom Juan, sorrindo. Dom Genaro acrescentou mais nomes e Dom Juan também; e absorveram-se em enumerar uma série dos nomes mais cômicos e incríveis de cidades.

 — Rodopiar com seu aliado há de mudar sua idéia do mundo — falou Dom Juan. — Essa idéia é tudo; e quando isso muda, o próprio mundo muda.

 Lembrou-me de que uma vez eu lhe lera um poema e quis que eu o recitasse. Deu algumas palavras do poema e eu me recordei de lhe ter lido uns poemas de Juan Ramon Jimenez. Esse especial que ele citava era intitulado El Viaje Definitivo (A Viagem Definitiva). Eu o recitei.
"... e eu partirei. Mas os pássaros ficarão, cantando:
e meu jardim ficará, com sua árvore verdejante,
com seu poço d'água.
Em muitas tardes os céus serão azuis e plácidos,
e os sinos da torre repicarão,
como repicam esta tarde.
Aqueles que me amaram passarão,
e a cidade explodirá de novo cada ano.
Mas meu espírito sempre vagará nostálgico
no mesmo recanto escondido de meu jardim florido. "

 — É esse o sentimento de que fala Genaro — disse Dom Juan. — Para ser feiticeiro, o homem tem de ser apaixonado. Um homem apaixonado tem bens terrenos e coisas queridas... se nada mais, o simples caminho em que anda.

 “O que Genaro lhe contou em sua história é precisamente isso. Genaro deixou sua paixão em Ixtlan: seu lar, sua gente, todas as coisas de que gostava. E agora ele vagueia em seus sentimentos; e, às vezes, como ele diz, quase alcança Ixtlan. Todos nós temos isso em comum. Para Genaro é Ixtlan; para você será Los Angeles; para mim...”.

 Eu não queria que Dom Juan me contasse sobre si. Ele parou como se tivesse lido meus pensamentos, Genaro suspirou e parafraseou as primeiras linhas do poema:

 — Parti. E os pássaros ficaram, cantando.

 Por um momento, senti uma onda de nostalgia e uma indescritível sensação de solidão nos envolvendo. Olhei para Dom Genaro e vi que, como homem apaixonado, ele devia ter tido muitos laços do coração, muitas coisas de que gostava e que deixou para trás. Tive a sensação exata de que, naquele momento, o poder de suas recordações estava a ponto de desabar e que Dom Genaro estava quase chorando.

 Depressa, desviei o olhar. A paixão de Dom Genaro e sua suprema solidão fizeram-me chorar. Olhei para Dom Juan. Estava-me fitando.

 — Só como guerreiro pode-se sobreviver no caminho do conhecimento — disse ele. — Pois a arte de um guerreiro é equilibrar o terror de ser homem com a maravilha de ser homem.

 Olhei para os dois, um de cada vez. Seus olhos eram límpidos e calmos. Tinham evocado uma onda de nostalgia avassaladora e quando pareciam estar a ponto de explodir em lágrimas apaixonadas, dominaram a maré. Por um instante creio que vi. Vi a solidão do homem como uma onda gigantesca que se tinha congelado em minha frente, contida pelo muro invisível de uma metáfora.

 Minha tristeza era tão acabrunhante que eu me sentia eufórico. Abracei-os. Dom Genaro sorriu e levantou-se. Dom Juan também se levantou e pôs a mão em meu ombro.

 — Vamos deixá-lo aqui — disse ele. — Faça o que achar que deve. O aliado o estará esperando na borda daquela planície. — Ele apontou para um vale escuro ao longe. — Se você achar que ainda não está na sua hora, não compareça ao encontro — continuou. — Não se ganha nada forçando a mão. Se quiser sobreviver, você tem de ser de uma limpidez cristalina e mortalmente seguro de si.

 Dom Juan afastou-se sem olhar para mim, mas Dom Genaro virou-se umas duas vezes, insistindo com uma piscadela e um movimento de cabeça para eu ir em frente. Olhei para eles até que desaparecessem ao longe, e depois fui para meu carro e parti. Sabia que ainda não era chegada a minha hora.