A Loucura Controlada

 Trecho de Uma Estranha Realidade, do antropólogo Carlos Castañeda, no qual é abordado o tema da ''loucura controlada''. Segundo o bruxo Juan Matus, tudo o que fazemos, pensamos e sentimos; todas as nossas atividades e crenças, são apenas escudos, véus que colocamos diante dos olhos para pouparmo-nos de encarar o fundo dos abismos de nossa própria natureza misteriosa.

 Um dos efeitos colaterais mais embaraçosos causados por nossos ''escudos'' é que nos tornamos tão dependentes deles, tão obcecados por nossas rotinas, que os tomamos a sério demais.

 A loucura controlada é o comportamento que o guerreiro adota diante de situações em que precisa interagir com seus semelhantes, em que ele age impecavelmente mesmo quando não se importa com o que faz. É um meio de agir livre de obsessões. Controlar a loucura social, agindo de forma consciente e não por impulso, é uma das artes da feitiçaria.

 ***

'' Eu estava ajudando-o a limpar umas ervas secas. Trabalhamos num silêncio total por muito tempo. Quando sou forçado a permanecer calado por muito tempo, fico apreensivo, especialmente junto de Dom Juan. Num dado momento, fiz-lhe uma pergunta, num rompante impulsivo, quase truculento.

 — Como é que um homem de conhecimento pratica a loucura controlada, quando se trata da morte de uma pessoa que ele ama?


 Dom Juan foi colhido de surpresa por minha pergunta e olhou para mim de modo estranho.


 — Veja seu neto, Lúcio, por exemplo — disse eu. — Seus atos seriam loucura controlada, no momento da morte dele?


 — Veja meu filho Eulálio, é um exemplo melhor  —  respondeu Dom Juan, calmamente. — Foi esmagado pelas pedras quando trabalhava na construção da Estrada de Rodagem Pan-Americana. Meus atos para com ele no momento de sua morte foram loucura controlada. Quando cheguei à área das explosões, ele estava quase morto, mas o corpo dele era tão forte que continuava a se mexer e dar pontapés. Fiquei diante dele e disse aos rapazes da turma da estrada para não mexerem mais nele; obedeceram-me e ficaram ali em volta de meu filho, olhando para o corpo estraçalhado. Também fiquei ali, mas não olhei. Desviei os olhos para poder ver sua vida pessoal se desintegrando, expandindo-se incontrolavelmente além de seus limites, como uma neblina de cristais, pois é assim que a vida e a morte se misturam e expandem. Foi o que fiz no momento da morte de meu filho. É só isso que se poderia fazer, e isso é loucura controlada. Se eu tivesse olhado para ele, teria visto que ele ficava imóvel e teria sentido um grito dentro de mim, pois nunca mais havia eu de ver sua bela figura andando pela terra. Em vez disso, eu vi a morte dele, e não houve tristeza, nem sentimento algum. Sua morte foi igual a tudo o mais.


 Dom Juan ficou calado por algum tempo. Parecia triste, mas depois sorriu e bateu na minha cabeça.


 — Por isso você pode dizer que, quando se trata da morte de uma pessoa que eu amo, minha loucura controlada consiste em desviar o olhar.

 Pensei nas pessoas que eu mesmo amo, e uma onda de autocomiseração terrivelmente opressiva me envolveu.


 — Sorte a sua, Dom Juan — falei. — Pode desviar o olhar, mas eu só posso olhar.


 Ele achou graça naquilo e riu.


 — Sorte, uma bosta! É trabalho duro.


 Nós dois rimos.''


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